Desde a última semana, temos acompanhado uma discussão que viralizou na internet sobre ser “cringe”. Há os que se identificam, os que se questionam, os que se ofendem, os que acham graça e por aí segue uma “paleta” de afetos e reações que parece ter deixado poucos de fora.
Nos propomos aqui a fazer uma pequena apresentação do termo para, em seguida, aprofundar um pouco a discussão sob a luz da psicanálise e da educação.
De onde surgiu o termo “cringe” e por que explodiu como meme na internet?
O termo cringe não é novo. Num vídeo publicado em maio de 2020, a youtuber “Contrapoints” aponta que a palavra “cringe” começou a ganhar a internet em 2016 justamente no auge do aplicativo de compartilhamento rápido de imagens e vídeos por aqui. Desde então, sua popularidade só cresceu.
Entretanto, naquele momento, o sentido tinha uma conotação diferente da atual. “”Cringe” virou um gênero de vídeos de reação no YouTube e de fóruns como 4chan e o Reddit, onde os supostos esquisitos – de otakus a feministas – eram constantemente avacalhados.
Além disso, a palavra, que é mais uma importação questionável do vocabulário inglês, tem sua origem no adjetivo cringeworthy, derivado do verbo to cringe. Ou seja, utilizamos o verbo com o significado de adjetivo. O termo cringeworthy designa algo que é “vergonhoso”, “vexatório” e na nossa tradução passou a ser conhecido como “vergonha alheia”.
Nas postagens, essa expressão vem sempre associada a algum comportamento da geração Y ou os Millennials (adultos nascidos entre 1980 e 1995) apontado pela geração Z (jovens nascidos entre 1995 e 2010) como algo vergonhoso.
Assim, os nativos da geração Z, em suas publicações no Twitter passaram a considerar “cringe” ou “vergonha alheia” hábitos como usar calça skinny, tomar café, ser fã de Harry Potter e das produções da Disney e gostar de minimalismo.
Quando perguntados no Twitter sobre o sentido da palavra “cringe”, jovens do século XXI (a chamada geração Z) respondem que se tratam daqueles hábitos dos millennials – e que incluíam tomar café da manhã, pagar boletos e tomar uma cerveja litrão. E isso gerou uma série de questionamentos, incômodos e novos memes nas últimas semanas.
O fato é que para os estudiosos das redes sociais e usos das tecnologias é difícil precisar quando esses memes passaram a ser utilizados. Entretanto, já eram observados no Snapchat em contraponto ao termo “based”, que designava aquele que seria “fodão”.
O impacto da divisão entre gerações e seus comportamentos
Para esta que vos escreve toda esta polêmica traz uma série de questionamentos sobre os quais pretendo refletir aqui.
Em primeiro lugar, observamos que uma discussão que estaria circunscrita a sujeitos nascidos após o ano de 1980 se popularizou entre nascidos em anos muito anteriores. E por que isso acontece?
Numa sociedade em que convivem crianças, adolescentes, jovens adultos, adultos mais jovens e adultos mais antigos, como a nossa, e que sofreu os impactos de uma transformação tecnológica numa velocidade nunca antes vista, é bastante compreensível que o uso dos recursos digitais e das novas mídias flexibilize essa divisão entre gerações.
As definições das gerações Baby Boomers, X, Y, Z e agora, a Alpha pretendem, para fins de caracterização, identificar e explicar comportamentos. E, se por um lado, elas de fato nos ajudam a compreender as atitudes concernentes a cada grupo, por outro, ela não dá conta do modo híbrido como cada geração está dando conta de se entender com a velocidade do mundo que habitamos.
Poderia citar vários exemplos, mas vou me ater ao que aconteceu durante a pandemia da Covid-19, com as gerações que tinham menos intimidade com o mundo digital na minha área de trabalho.
Por que ser “cringe” se tornou incômodo para alguns?
O esforço que nós, profissionais, tivemos que fazer para continuar trabalhando online foi “hercúleo”. Para darmos continuidade a nossos atendimentos, nossas aulas e seminários, nos vimos obrigados a adquirir equipamentos, aprendermos a lidar com várias plataformas ao mesmo tempo, viramos um pouco youtubers, blogueiros, videomakers, dentre outras habilidades que não imaginávamos que seria possível desenvolvermos. Era isso ou nossos pacientes e nossos alunos ficariam desassistidos. E, isto, para quem assume seu ofício com ética seria inconcebível.
Ou seja, é muito compreensível que esta modalidade tão híbrida de vida, que fez com que algumas gerações, como a X, tendo nascido num mundo totalmente analógico, tenha se adaptado a mudanças radicais, “reivindiquem” a não participação na categoria dos “cringe” e tenha preenchido os testes de internet, buscando alguma recompensa pelos anos de esforço.
Em segundo lugar, lembro Contardo Calligaris quando nos aponta que as juventudes são um excelente negócio para o mercado. Neste sentido, tanto as crianças quanto os adultos passam a ser consumidores potenciais do mesmo, recusando características originalmente atribuídas às suas faixas etárias. Deste modo, presenciamos um fenômeno, no qual, a adolescência tem iniciado cada vez mais prematuramente e se estendido para idades mais avançadas.
O adolescente ou o jovem se tornou um ideal para a sociedade como um todo. Sendo assim, não foram somente os Millennials que se sentiram atingidos por serem chamados de “cringe”, já que a alusão pejorativa coloca em xeque o sentimento de pertencimento que tanto é almejado em nossa sociedade.
Em terceiro lugar, saliento que, no conjunto da polêmica, ouvi alguns comentários ressentidos que desmerecem a geração Z alegando que têm vinte anos, mas vivem como se tivessem sete, que vivem às custas dos pais, que não sabem lavar suas roupas íntimas, que só se preocupam em fazer vídeos de maquiagens, que querem um iPhone 12 pro max e, muitas vezes não têm nem reboco na casa, dentre outras coisas.
Neste sentido, se criou uma nova lista do que seria “cringe”, só que agora, identificando o termo a comportamentos condenáveis dos nascidos no século XXI. O “feitiço se virou contra o feiticeiro”.
Conflito entre gerações
Entendo que as duas posturas são altamente questionáveis. Como disse anteriormente, vivemos numa sociedade que se caracteriza pela convivência de perfis que se aproximam muito e que, muitas vezes, clamam por estarem na mesma condição. Uma sociedade na qual a complexidade está na ordem do dia.
Além disso, todo ser humano nasce do entrecruzamento de contextos sociais, econômicos, políticos e subjetivos. Ou seja, culpabilizar uma ou outra geração por seus hábitos ou escolhas, não somente desconsidera este fato, empobrecendo a análise, como também ignora que esses sujeitos estão sendo criados por gerações anteriores. Portanto, como todos nós, não se autodeterminam.
Para aqueles que convivem com várias gerações em seu trabalho e que, consequentemente, refinaram a sua escuta ao longo dos anos, nenhuma dessas classificações deve ser usada sob o risco de cairmos em generalizações que podem trazer muita injustiça e sofrimento.
Todas as pessoas adultas que nasceram antes de 1980 viveram a própria vida batalhando pelo seu sustento e tomaram as melhores iniciativas e decisões? Causaram os melhores efeitos sobre o mundo sempre?
Todas elas pagam suas contas e não sofrem os impactos e as limitações de sua geração?
Estariam todos preparados para viver sem preconceitos, com ética, justiça, consciência sobre sustentabilidade e diversidade?
Do mesmo modo, todos os nascidos após 1995 não assumem suas responsabilidades, não arrumam a própria cama e pretendem viver à custa dos pais por longos anos?
Eu ousaria dizer que para todas as perguntas acima, a resposta seria não!
O que observo em todas as gerações são pessoas que sofrem as influências de seu tempo, que descobrem coisas novas todos os dias, que estão exaustos com a velocidade como a vida contemporânea se apresenta, que têm sintomas que revelam suas angústias de formas muito singulares.
Se podemos observar os tweets ofensivos que rotulam os “cringe”, também encontramos memes que falam de dramas pessoais de difícil superação. Que falam de suas dores, de sua insegurança, da falta de perspectiva de futuro, de suas desilusões de amor.
Como aproximar as gerações e promover diálogo?
Se Paulo Freire nos deixou algumas heranças valiosas, podemos lembrar as noções de temas geradores e de diálogo. Se pensarmos que nós somos os adultos desta relação e que nossos adolescentes esperam alguns acenos que norteiam suas ações e apontam caminhos, que tal ouvi-los e descobrirmos aquilo que nos enunciam?
Que tal usar o que nos trazem, como os vídeos de anime, “funfics”, memes para compreender a linguagem que usam e empreender trocas que produzam diálogos produtivos e fecundos?
Esse é meu convite e nosso desafio. Como nos lembra o psicanalista Sándor Férenczi, é possível sentir com o outro. Estar em sua presença de maneira integral e percebendo-o em sua singularidade. Na minha experiência isso tem construído mais caminhos e aberto portas de diálogo entre as gerações. E, se não é disso que nosso mundo precisa, do que mais será?
- Temos muito o que partilhar e muito o que escutar. Dá para questionar e criar alternativas. Como bem nos lembra a psicanálise, somos habitados por afetos ambivalentes e isso faz parte de sermos humanos. Demonizar ou santificar algum grupo é reproduzir um modelo reducionista que não dá conta da escuta e da empatia que tanto precisamos em nossos dias.
Referências:
https://www.ibahia.com/detalhe/noticia/viralizou-o-que-significa-a-palavra-cringe/