Na última edição do programa televisivo Big Brother Brasil uma das novidades foi o chamado “jogo da discórdia”. Pela “telinha” os espectadores do reality puderam presenciar encontros onde um dos participantes tinham suas características mais “negativas” sublinhadas pelos outros, num ritual de exposição bem compatível com a proposta do programa, mas com o requinte de humilhação próprio dos grupos quando se juntam para desqualificar uma ou mais pessoas.
Na verdade, essa não seria a primeira vez na qual um veículo midiático sugere ao público que valores como a vergonha pública, a crueldade e a falta de sensibilidade no trato com o outro é algo cabível. Deste modo, milhares de lares são invadidos pelos exemplos mais nefastos de convivência e banalização da violência. Até aqui, tudo absolutamente dentro do propósito de um programa que se utilizará de todos os artifícios para manter e ampliar sua audiência.
As consequências teriam sido menos graves se parte da audiência do programa, composta por adolescentes, não tivessem, seguindo o exemplo oferecido, levado o mesmo jogo para o interior das escolas.
Entretanto, o fato é que, passados alguns meses do fim do reality, ouvimos relatos nos quais o jogo, com ou sem adaptações, tem sido praticado em ambientes escolares. No Distrito Federal, a diretoria de ensino das escolas públicas, relatou, em março deste ano, episódios de violência física decorrentes da contrariedade vivida por jovens ao se verem expostos pelo conteúdo do jogo.
Do mesmo modo, instituições de ensino da rede privada apelam para o compartilhamento da situação com as famílias ou mesmo necessitam interferir após sentimentos de mágoa, tristeza e profundo desconforto serem relatados pelos seus estudantes ao fim da realização do jogo.
Como se as equipes escolares não tivessem muito trabalho, como se a adolescência já não fosse uma fase sensível ou como se os efeitos do isolamento social provocados pela pandemia da Covid-19 não fossem suficientes, surge esse novo desafio a ser equacionado no ambiente escolar.
É certo que o “jogo da discórdia” pode ser classificado como uma modalidade de intimidação sistemática também conhecida como Bullying. A exposição de um ou mais adolescentes nessa atividade, que pode acontecer até mesmo na própria sala de aula, no intervalo entre as aulas ou momentos antes do recreio, traz alguns pontos que são passíveis de reflexão.
Numa sociedade polarizada, na qual o discurso de ódio e a hostilidade vêm sendo praticados recorrentemente, que instituições, além da própria escola, são responsáveis por tentar trazer à tona a cultura da paz ou da não violência, o diálogo civilizado como forma de apresentação das opiniões e o incentivo ao respeito?
Não é mais concebível que sobre as escolas recaia toda a responsabilidade em “aparar as arestas” deixadas pela exposição das crianças e adolescentes ao ambiente midiático, às redes sociais ou as hashtags bombásticas que fazem com que grupos inteiros pratiquem as mais variadas formas de agressão.
Se a escola tem a responsabilidade de trabalhar aspectos como a empatia, a tolerância, a convivência educada e os relacionamentos saudáveis, não é possível que ela se mantenha “enxugando gelo”, quando outras instituições da sociedade não se responsabilizam pelo incentivo que promovem à agressividade destrutiva e aos rituais de desqualificação pública dos sujeitos.
Em 2021, a UNESCO nos apresenta a cartilha: “Paz, como se faz? Semeando cultura de paz nas escolas”, assinada pelas autoras Lia Diskin e Laura Roizman. Além disso, estabelece que a cultura da paz está na ordem das prioridades no que tange às orientações relativas às práticas de ensino. Muito fecundo e necessário, esse trabalho. Mas, será que não seria momento de avançarmos? Que espécie de estratégia ou crivo crítico podemos lançar sobre os veículos midiáticos, sobre as redes sociais ou mesmo sobre os programas de incentivo à cultura?
Se não temos respostas prontas para estas perguntas e sabemos que essa é uma equação bastante difícil, devemos concordar que a promoção de sofrimento para as crianças e adolescentes do nosso país tem que cessar. Os riscos são grandes e desde a família até o conjunto da sociedade temos sofrido os impactos de gerações mais vulneráveis, angustiadas e mergulhadas na desesperança.
Será que não é hora de fazermos eco às vozes que pedem paz e cultivam a não-violência? Espero que sim!